COLUNA JORNAL "O DIA" - 1ª MATÉRIA.



Padre Fábio de Melo
  Um altar no ponto de ônibus         Rio - Eu olho para o mundo. A vida me afeta o tempo todo. É um exercício que faço. Resolvi ficar atento para não incorrer no erro de perder esta sensibilidade. Tenho medo de fechar o canal por onde o cotidiano me acessa, adentra os meus espaços, repousa em mim.
        -Vez em quando eu mepercebo acostumado aos absurdos do mundo, ou então incapaz de me alegrar com as alegrias que as esquinas resguardam. O motivo é simples. Sou contemporâneo. Estou exposto às demandas urgentes que meu contexto histórico me apresenta. Estou mergulhado nas estruturas deste mundo líquido, neste movimento de dias cuja metáfora é o fluir das águas que entre os dedos escapa.
        -As interpelações são muitas. Meu corpo único precisa administrar deslocamentos muitos. Discrepância que reconheço como revelação de uma realidade que me define como pessoa. Meu corpo é moderno, mas minha alma é antiga. Meu corpo é afeito às pressas, agendas, compromissos, ao passo que minha alma grita e reclama desejosa de calmaria.
          -Tenho encontrado muita gente sofrendo do mesmo mal. A origem de muitas angústias está diretamente ligada ao contexto de pressas e urgências que nos cercam. As cenas estão por todos os lados. Há sempre alguém estabelecendo o embate com o tempo. Gente que precisa articular as pressas do mundo com os desejos da alma.
           -Olho para a mulher simples que aguarda pelo ônibus que a conduzirá ao destino de sua casa. Os olhos parecem cansados com a espera. Deve ter passado o dia todo longe de seus significados, cuidando de filhos que não são seus, organizando a casa que não é a sua.
            -Eu a observo de longe, enquanto espero do meu carro o desenrolar do trânsito.
            -Vez em quando os seus olhos se perdem no pequeno relógio que está atado ao pulso. Olha como se quisesse paralisar o movimento dos ponteiros que a envelhece. Olha como se desejasse fazer andar lento o tempo que lhe sobra para estar com os seus.
           -As sacolas plásticas segredam a pobreza do que ali se leva, mas não é intencional. A mulher não parece temer a revelação de sua simplicidade. Não há tempo para simulações. Tudo está à vista, pronto para ser desvendado, tal qual o enegrecimento do céu anunciando a chuva que virá.
          -A mulher e o tempo. Nela nós também nos reconhecemos. Nós e nossas esperas. Inadequações que nascem da vida que nos afeta, do tempo que nos esbarra.
          -A experiência nos ensina que nem sempre é possível viver conforme o nosso desejo. Não temos como romper a prevalência das agendas tão prontas e acabadas. Mas nestes intervalos de obrigações e compromissos é interessante que a alma permaneça desarmada. O cotidiano é prenhe de simbologias que nos propõem valores superiores, transcendentes. Pelas ruas das cidades há sempre um altar erigido, vida humana sendo santificada mediante o rito que o amor sugere. A mesa está posta. Sejam todos bem vindos ao banquete que no ponto de ônibus eu encontrei.


           Padre Fábio de Melo: Duas flores. De lis
          Rio - Flordelis. A poesia do nome se estende pela prosa da vida. Ela é mulher. Espaço humano onde a esperança encontrou espaço para crescer, lançar raiz. Cresceu tanto que oferece em cestos aos que dela se aproximam. Cumpre na carne a proeza de ser simbólica; território que proporciona o encontro da poesia com a atitude.
          -Nasceu na favela. Cresceu num ambiente marcado pelas restrições. Carência material que não teve o poder de empobrecer a alma. Desafiou a regra simplista que acredita na predestinação que o espaço físico pode impor ao ser que o habita.
          -Flordelis é um nome bonito. Remete ao contexto da poesia do mestre Djavan, ao lamentar a morte de seu jardim, ao constatar que suas riquezas estão ressequidas, sepultadas pelo poder absoluto da morte. Canção que tem como ponto de partida o discurso da falta, impossibilidade de um amor terminado, esperanças findadas, imposição de um destino que disse não àquele que só desejava ser feliz.
          -Mas há um detalhe interessante. Aos ouvidos desavisados a canção parece ter nascido de motivos felizes. É que a beleza da melodia não nos permite perceber a tristeza da letra. Coisas de Djavan. Virtude de conseguir revestir de leveza o que é naturalmente pesado e sofrido. Mestria que o poeta tem de tocar as feridas com dedos leves. Ofício de aliviar os pesos que estão colocados sobre os ombros da humanidade.
          -A poesia de Djavan está costurada nos motivos que movem a personagem de minha estreia nesta coluna. Flordelis é apaixonada pelos jardins que estão aparentemente mortos. Aprendeu a se aproximar dos calvários da vida. Subiu morros, desafiou traficantes, converteu ódio em amor, fez alquimia no coração dos violentos. Ofereceu ternura aos que antes não conheciam a força restauradora da palavra que tem o dom de bem aventurar, isto é, colocar no caminho do bem.
          -Flordelis não tem muitos recursos. Ela só acredita no poder da palavra. “Basta uma palavra para mudar”. Este é o subtítulo do filme que relata o seu desejo de reflorescer o espaço humano.
          -Confesso que não a conhecia. Fui impactado pela sua história, quando casualmente eu a encontrei num canal de televisão. A entrevista girava em torno de sua tentativa de melhorar as estruturas da sociedade em que está situada.
          -O lar de Flordelis é um canteiro de crianças rejeitadas. Elas são muitas. Fiquei comovido com a história de Rayane, uma menina que contou ter sido jogada fora pela mãe biológica, assim como se joga um objeto indesejado. Durante o relato do abandono, os olhos da menina estavam inundados de lágrimas. Motivos diversos. Mas o que prevalecia era a gratidão. Flordelis a encontrou. Ofereceu maternidade, colo aconchegante, lugar terapêutico onde o passado seria esquecido, catarse que só o amor pode fazer acontecer.
          -Acho interessante e sugestivo começar esta coluna com esse paralelo. Flordelis faz com a vida de seus filhos o mesmo que Djavan fez com a história triste que é a matéria prima de sua canção. Ela reveste de melodia feliz.
          -O lar de Flordelis é um canteiro de histórias tristes, mas lá quem prevalece é a alegria. A fórmula? A palavra que escolheu para nortear a vida de seu lar: o amor. Ela é representante da bondade. Descobriu que o mal já tem adeptos demais. Quis fazer a diferença. E fez. E faz. Flordelis é uma proposta humana que não quero perder de vista. Ela traz no coração e na mente o código que distingue um ser humano de todos os outros. Flordelis é uma canção bonita que quero escutar sempre, assim como escuto a Flor de lis de Djavan. O mundo carece dessas composições.


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